terça-feira, 10 de outubro de 2017

RUBRICA - "Entre quatro paredes", de Jean-Paul SARTRE

RUBRICA terça-feira, 10/10/17


O inferno somos nós mesmos
Capa do livro, pela Gallimard da coleção folio [bolso], em que traz na capa cena com os três atores que primeiro representaram a peça "Huis clos" ["Entre quatro paredes"], de Jean-Paul Sartre


Vamos abrir as portas do Inferno!
Se você está associando o Inferno a um lugar mais quente do que o deserto do Atacama, com direito a fetiches hardcore com chicotes e toda a sorte de peças para tortura neomedievalescas ao som dissonante de gritos e berros de dores e suplícios, pode esquecer esse “paraíso” para masoquistas de plantão!
O Inferno de Sartre é uma sala limpa, quente e com luz acesa sempre, onde as pessoas têm que conviver entre si e consigo mesmas. Parece simples, né?... Mas é como sempre digo: Não há nada ruim o suficiente que GENTE não consiga piorar. E em “Huis clos”, as três personagens que dividem o palco sem intervalo (peça em um ato) e sem poderem se ausentar provam que tudo pode acontecer quando há pessoas conversando.
“Huis clos” [em tradução literal seria “a portas fechadas”, mas foi traduzido para o português como “Entre quatro paredes”] é uma peça teatral engajada no existencialismo, teoria filosófica defendida pelo seu autor, Jean-Paul Sartre. Escrita durante a guerra e somente sendo encenada em 1944, no Théâtre du Vieux-Colombier, sob a direção de Raymond Rouleau, não poderia se desviar do momento histórico de sua criação, portanto, a peça não deixa de ser, igualmente, um eco das experiências da guerra, da ocupação e da liberação que o autor presenciara - e uma personagem que representa essa história é Garcin, jornalista pacífico, executado por deserdar o campo de batalha. Garcin, aliás, é a personagem que primeiro abre a porta dessa sala infernal, é com ele que entramos nesse Inferno psicológico, principalmente com a chegada de Estelle e Inês - esses três irão se revezar, entre si, nos papéis de verdugo e vítima, uns dos outros. Porque o pior inferno não é o local em si, mas as pessoas no lugar.
Frase emblemática e que resume o existencialismo sartreano: "O inferno são os Outros"



Os outros
As pessoas estão mortas e estão no Inferno. Obviamente, não foram heróis em vida. Descobrir que Garcin era um covarde e traidor da pátria, Estelle uma adúltera e infanticida, e Inês uma lésbica e suicida não é o prato principal desse texto teatral, mas os diálogos que são construídos, os mecanismos de manipulação com que as outras duas personagens interrogam um alvo por vez, em uma ciranda de jogo da verdade com suspeitas e acusações cruéis. Toda essa descoberta do Outro e as reações que provocam é que são o ponto forte dessa obra.
INÊS: Morre-se sempre cedo demais - ou tarde demais. No entanto a vida está aí: liquidada. Já foi passado o traço debaixo das parcelas, resta fazer a soma. Você nada mais é do que a sua vida.
A ideia mais forte que vem ao ler “Entre quatro paredes” é como agiríamos no lugar deles três? e também pode-se pensar que “pecados” cometemos para nos prendermos a uma situação insuportável? E, por fim: a vida, a convivência com o Outro… isso já é um Inferno.
GARCIN: (..) Então, isto é que é o inferno? Nunca imaginei… Não se lembram? O enxofre, a fogueira, a grelha… Que brincadeira! Nada de grelha. O inferno… são os Outros.
Tania Balachova (Inês Serrano), Michel Vitold (Joseph Garcin) e Gaby Sylvia (Estelle Rigault) eram os três amigos a quem Sartre escreveu a peça e, para que nenhum se sentisse em um papel menos importante do que o outro, criou esse cenário em que permaneciam durante todo o transcorrer da peça.


Bastidores
INÊS: Morta! Morta! Morta! Nem a faca, nem o veneno, nem a forca. Está tudo acabado, compreende? E estamos juntos para sempre. (Ri)
ESTELLE (numa gargalhada): Para sempre, meu Deus! Que engraçado! Para sempre!
GARCIN (que ri, olhando as duas): Para sempre!
(Caem sentados cada qual sobre o seu sofá. Um longo silêncio. Deixam de rir e entreolham-se. Garcin ergue-se.)
GARCIN: Pois é, continuemos!
Sim, “continuemos!”, posto que tem que se continuar. E embora a maioria das pessoas leiamos de forma “rasa” a frase “O inferno são os outros” enquanto uma releitura da vida cotidiana, Sartre pretendia ir além. O que ele pretendia dizer era que “se as relações com outra pessoa estão tortas, viciadas, então o outro será, logicamente, o inferno. Por quê? Porque as outras pessoas são, no fundo, o que há de mais importante  em nós mesmos para que, assim, possamos melhor conhecer a nós mesmos. [...] Nós nos julgamos de acordo com o que os outros podem pensar de nós. Qualquer coisa que eu diga de mim mesmo, entrará no meio um pré-julgamento de outra pessoa. O que significa que, se minha relação está ruim, acabo ficando dependente do que o outro pensa de mim. E dessa forma é que estarei no Inferno. Existem muitas pessoas que estão vivendo em um Inferno em vida por dependerem da opinião alheia. Obviamente que não podemos viver sem manter relações com as outras pessoas, na realidade, isso só demonstra a importância capital de todas as outras pessoas para cada um de nós.”
Uma segunda luz sob a qual se pode observar “Entre quatro paredes” é o “envernizamento”; de acordo com o próprio Sartre, “muitas pessoas se envernizam em uma série de hábitos e atitudes, pelos quais são julgados e sofrem com isso, mas mesmo assim não mudam. Essas pessoas estão como mortas.”
Jean-Paul SARTRE

Ou seja: o inferno é o quanto o olhar do outro nos incomoda - e só nos incomodamos com o olhar do outro quando esse olhar alheio reflete o nosso próprio olhar sobre nós mesmos - em suma, o inferno somos nós mesmos, que nos refletimos nos olhares dos Outros.
Sabendo que o existencialismo ateu acredita que a vida em si não tem sentido e que, por isso, todo ser é responsável em criar o sentido para a própria vida, nada mais esperado que em “Entre quatro paredes” haja um desprezo pela acomodação e inércia, que não permitiriam a escolha responsável pela liberdade (perceptível quando descobrem que a porta não está trancada, mas os três permanecem na sala infernal).
Um texto atual que já teve duas versões cinematográficas, uma em 1954 e outra em 1962 (sob o título de “No exit” [Sem saída]); e uma adaptação televisiva em 1965. Além de ter inspirado  os filmes estadunidenses “A Caixa” (The Box, 2009, com Cameron Diaz) e “Natureza selvagem” (2001, com Tim Robbins) - neste último a inspiração se dá na ambientação da pós-morte do protagonista; uma casa onde tem a eternidade para contar a sua história de vida.
O livro já sofreu várias traduções, mas uma das mais consideradas é a de Guilherme de Almeida, tradução essa que foi repetida na edição de capa dura da coleção “Teatro vivo”, lançado pela editora Abril Cultural. Leitura fluida, com indicações de cena resumidamente necessárias, o texto tem um grande foco não na encenação, mas no texto, nas falas das personagens em si, o que facilita a leitura com a impressão de estarmos acompanhando, como observadores,  uma conversa entre outras três pessoas.
E fica a sensação final: como contar a nossa vida pela eternidade sem arrependimentos?
Peça sempre atual porque trata de questão humana, "Huis clos" está em cartaz neste mês, 72 anos depois de ter estreado.



Tetê Macambira é escritora, tradutora, revisora que já vivenciou o Inferno mas sobreviveu e colabora quinzenalmente com o blog “Leituras da Bel” com a coluna Rubrica, na qual emite notas literárias sobre peças teatrais, defendendo a facilidade de se ler um texto narrativo baseado em diálogos.  LEIA TEATRO.

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